Sunday, April 26, 2015

Memórias falsas

Dizem que guardamos memórias falsas, inventadas da infância.
Eu tenho as minhas, embora não saiba dizer se são inventadas ou parcialmente falsas.
Há uma, bem vívida, de ver um homem de terno, sem cabeça, avistado da janela da segunda casa em que vivi. Essa é claramente uma mistura de falsa e inventada.
Há outra, de ver o coração de um animal na calçada e, por algum motivo que me escapa, ter certeza de que era humano.
Tem a dos fantasmas do meu quarto. Pessoas que não conhecia e apareciam diante da minha cama, ou à porta, no meio da noite. Às vezes, eram os vivos em forma etérea, familiares - minha mãe, prima, avó.
Tem uma, porém, que eu acho que é apenas difusa, talvez um pouco inventada.
De estar no fundo de uma piscina vazia, a ler um livro ilustrado de borboletas, dado a mim por uma moça muito amável, de quem só me lembro como uma presença benigna, alguém que trazia um certo conforto, uma felicidade que só as crianças apreciam. Ela era relacionada aos amigos do meu pai, não sei se foi a que morreu precocemente, ou uma que sumiu do mapa. Só a minha mãe poderia esclarecer isso, mas ela não está mais aqui.
O fato é que tínhamos uma piscina, pequena e rasa, construída no quintal. E que tinha uns livros assim, que foram doados sem o meu consentimento e desapareceram juntamente com a piscina - a área foi convertida em bancos para o convívio familiar. Ah, o utilitarismo.
Até hoje, quando vejo borboletas em ilustrações, lembro-me da moça sem rosto. De gostar dela. E me dou de conta de que é possível que nada disso tenha acontecido assim. De que é possível que não tenha passado de um sonho intenso na infância. De que é possível que a moça não tenha me dado o livro (mas me deu um baralho de joaninhas, disso tenho certeza, eu tinha um baralho de joaninhas em tons de laranja presenteado por uma amiga do meu pai), de que não tenhamos lido o livro das borboletas sentadas no fundo da piscina. É possível, mas eu queria muito que isso tivesse acontecido e que minha mãe pudesse me ajudar a esclarecer.


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